— Vai, sua vez, conta uma história bem embaraçosa.
Quando criança, eu não gostava do barulho de bombas nem de bexigas, porque fui vítima de um acidente. Não quero falar muito nisso, só digo que foi no carro dos meus pais e que ninguém morreu ou se feriu. Foi causado por uma briga entre eles dois, nos bancos da frente, e eu fiquei muito assustado que, mesmo após a batida, eles continuaram brigando.
Depois disso, me tornei uma criança assustada. Bater a porta na minha presença, objetos se quebrando, gritos súbitos, tudo isso me fazia encolher. Cresci buscando silêncio. Até acredito que comecei a prever os ruídos muito incômodos, microssegundos antes que eles acontecessem. Tudo ficou pior depois dos oito e até uns treze anos, quando eu não podia passar as viradas de ano na praia com meus pais, por causa da queima de fogos. Comecei inventando uma dor de cabeça, e com o tempo eles descobriram, entenderam, tentaram até marcar psicólogo para mim. Em final de campeonato ou em réveillon, eu comemorava minha sobrevivência embaixo das cobertas, o travesseiro apertando os ouvidos. Escutando ao longe os estouros, tinha algum controle da situação. Passei a infância sem frequentar as festinhas dos meus primos e colegas. Só comia brigadeiro em casa.
Quando entrei na adolescência, o alvoroço da turma na escola me fez perder um pouco o medo, na marra mesmo, ou porque os hormônios adolescentes fizeram algo misterioso por mim. Mas esses mesmos hormônios, ou outros, não sei, me tornaram um monstro. As espinhas, os pelos, a voz disforme, e uma certa excitação pelos mesmos barulhos que havia tão pouco tempo me apavoravam. Ora eu tinha medo, ora curiosidade e expectativa. E foi pela televisão que descobri um pouco mais sobre mim, sobre minha condição.
Tinha um cara na TV que contava uma história muito triste sobre um homem no lixão, que era ele mesmo, todo maquiado, passando por um dia por uma situação degradável qualquer para sensibilizar sua audiência e seus anunciantes. E repetia, de cabeça baixa:
— Muito triste… Muito triste…
De súbito, quando a audiência despencava, parava o que estivesse fazendo para anunciar:
— Prova da banheira!
Com esse grito eu também me assustava. E meu espanto aumentava ao ver os famosos da época em trajes de praia, esfregando seus corpos em uma cerimônia de banho coletivo televisionado. Noutro quadro do mesmo programa, homens de um lado, mulheres do outro (tenho quase certeza de ter visto ali o Jean-Claude van Damme), eles estouravam balões contra os corpos um dos outros. Não sei se é porque os balões estavam longe de mim, ou porque eu poderia abaixar o volume, ou então em razão de serem homens e mulheres se apertando, mas eu achei aquilo muito excitante. Que bom que eu estava sozinho em casa.
Ao término da gincana, a minha, experimentei uma sensação terrível de que havia feito algo errado. Senti um incômodo também nas vezes seguintes que ouvi um balão estourando. Passei dias ou semanas com o fôlego curto, e o pior é que não podia conversar com ninguém a respeito disso.
Ainda na adolescência, eu comprava bexigas rosas e vermelhas, enchia pela metade, sugava o bico dela e saboreava uma sensação que nunca mais vou sentir igual. A qualquer momento a bexiga podia estourar, eu sabia que não ia, enquanto estimulava meu prazer oral pensando nisso tudo.
No convívio social, era embaraçoso demais ficar me justificando toda hora, não bate a porta, odeio escapamento de moto (todo mundo odeia, menos o motoqueiro). Decidi que ia superar essa parada sozinho. Levou um tempo, até que depois de anos aprendi a perder essa paúra toda de barulho, mas nem tanto com os fogos e as bexigas estourando, essas últimas eu até aprendi a lidar de um jeito diferente.
Eu só não gostava de tomar sustos, e acho que ninguém gosta, é que eu lido mal mesmo. Mas, veja, digamos que o processo de superar isso para mim se tornou algo excitante. Estourar bexigas, ouvir o barulho e controlar meu medo fez com que eu me sentisse forte, homem. Se eu pudesse controlar meu medo, ainda mais diante de uma mulher, digamos, eu me sentia poderoso, e podia sentir algo inflando em mim. Se uma mulher estoura uma bexiga perto de mim então, não sei do que sou capaz de fazer. Até que um dia eu soube.
Eu sei que é estranho, na verdade deve ser muito mais comum do que se pensa mundo afora. Não fazemos ideia do que se passa no íntimo daqueles pessoas cujas mãos apertamos todos os dias. Pesquisei em fóruns da internet e descobri que minha condição tem alguns nomes: a começar com “parafilia”, quando o prazer libidinal de alguém reside em outra atividade além do sexo em si, seja um comportamento, uma situação e por aí vai. Daí para termos mais específicos: “ligirofobia”, o medo de ruídos incômodos. Ou “acusticofobia”, que é o medo de sons repetitivos ou padronizados, o que já me fez ser confundido com alguém no espectro autista. Só não encontrei ninguém até hoje que compartilhasse comigo a pira de se excitar exposto ao perigos dos barulhos. Se você consegue imaginar alguém assim, por favor, fale comigo.
Claro que isso atrapalhou minha vida sexual. Eu nunca chegava lá plenamente. Então um dia conheci uma gatinha no aplicativo e, depois de uns papos, resolvi botar tudo logo na mesa:
— Queria uma brincadeira a dois, em casa, nada de festas ou coisas do tipo. Uma festinha nós dois, tal, eu poderia até comprar um bolo, uns docinhos. Você gosta de encher balões? Gosta de estourar? Tanta coisa que a gente podia fazer...
— […]
— Voar de balão? Nunca pensei nisso, tá aí.
— […]
— Não, não sou terrorista etc. Isso não tem graça. É parafilia que chama.
— […]
Claro que deu tudo errado, fui parar em prints de grupos da internet e acho até que minha mãe compartilhou um deles.
As pessoas mais próximas nem me convidam mais para festa de criança, já sabem que eu posso entrar em pânico. Mesmo que não levem muito a sério, algumas até fazem piada com isso, mas eu não ligo. Elas só sabem do meu assombro, não do meu encantamento.
Eis que para uma festa eu fui obrigado a ir, porque era do filhinho do meu chefe na época. Um trampo que durou pouco, pois minha condição me custou um bom emprego CLT. Na festa tinha um pessoal lá da empresa, com alguns ainda tenho contato, só não estavam os que não puderam inventar alguma desculpa. A minha justificativa seria patética, então meti a mão na minha gaveta, tomei um remedinho qualquer e fui.
Acho que cheguei cedo demais, já que muita coisa ainda estava sendo organizada. Mas, claro, a presença dos balões não falhava, estavam ali azuis, amarelos, vermelhos, tótens da tara que as pessoas, tão logo tenham filhos, desenvolvem por estocar gás carbônico dentro de plástico. Eu na rodinha de colegas falando qualquer coisa com um copo na mão, o Mateo e o Enzo começam a estourar as malditas bexigas. Eu soltei um risinho e tentei me acostumar, e aí o perigo. Não foi o decote da blusinha da Valdirene, eu juro, apesar dos belos balões dela, mas em algum momento, disfarçando o nervosismo, eu comecei a soltar um risinho acanhado. Pode ser que eu tenha começado a transpirar.
Que ninguém me entenda mal, como eu não quero ser mal compreendido, é que eu não tenho nenhum interesse no universo infantil, nunca tive nenhuma tara na Mara Maravilha e muito menos sou um abusador em potencial. Não é o lúdico da coisa que me afeta, não é a infância, é a fobia e minha batalha para domá-la. E continuava ali, respirando fundo, a respiração mais curta, o sangue falhando do corpo e pulsando em lugares indevidos, até que eu pedi licença e saí correndo para o banheiro, pelo menos para me ajeitar.
Claro que o banheiro estava ocupado, e alguém me alertou que havia outro nos fundos. Nem tive tempo de agradecer, corri para a área da churrasqueira e, com algum alívio, abri a porta para me aliviar devidamente, de alguma forma, sabe-se lá do que eu era capaz. Não desejo um fetiche a nenhum de vocês, porque você imagina que é algo excitante, mas na verdade é mais um transtorno que te fará ter vergonha de sentir prazer, eu juro.
O caso é que lá dentro estava uma mulher e seu olhar surpreso, bem compenetrada na sua tarefa de continuar a decoração da festa: enchendo balões. Com a boca. Sim. Eu já estava com a calça nos joelhos, eu nem sabia o que ia fazer quando entrasse no banheiro (ou sabia?) e ela, para meu desespero, me olhou de cima abaixo e não esboçou qualquer julgamento.
— Vem logo, anda, rápido. — disse, baixando o ferrolho da porta atrás de mim. — Como você sabia que eu também queria? — e ninguém vai acreditar, vão dizer que eu ando vendo pornografia demais, ou filme adolescente, mas ela me agarrou, soltou a bexiga que estava segurando, e que fez um triste funhé pelos ares, e apertou meu corpo contra o dela. Nem conseguiria dizer se gostei na hora, porque foi tão rápido, e eu já estava tão pronto, que só obedeci aos movimentos agitados das mãos e bocas. A coisa ali muito boa, a sensação de ser flagrado por algum convidado, o perigo todo daqueles balões já cheios no exíguo espaço que nossos corpos ocupavam, tudo aquilo era mágico. Um balão mágico (desculpa, minha cabeça funciona assim).
— O que você quer que eu faça agora? — parecia mesmo que uma mulher estava disposta a me dar algum prazer. Então me soltei, fiz aquela admissão sincera de identidade que o tesão genuíno provoca, e pedi:
— Estoura esse balão aí do seu lado.
E então eu finalmente entendi o que significa quando alguém diz que fulano franziu o cenho. Ela me olhou, toda confusa, e perguntou:
— Você quer que eu passe esse balão no meu corpo? Tipo assim?
— Não. Estoura mesmo.
Não havia tempo para explicar a história toda, olha o tempo que tivemos aqui para eu tentar te explicar, e ela também não ia querer ouvir. Pegou um balão, esfregou pela barriga, pelos seios, passou a língua, mas claramente não estava à vontade, queria me agradar. Juntei seu corpo contra o meu, sobrepujando o artefato de plástico entre nossos corpos seminus e ofegantes, e estourei-o com fulgor. A sensação que se inicia nos meus tímpanos, se espalha pelo meu corpo e me enche de coragem e desejo, ai ai. Ela não entendeu nada, e eu peguei outro, um terceiro, passava nas minhas partes, completamente tomado, me esfregava na guirlanda ainda em construção e a sensação era de fogos de artifício mesmo, alguns estouros simultâneos, e ao longe as queixas da minha parceira casual. Percebi quando ela se irou e, aos gritos entredentes, me expulsou dali do banheiro, você estourou todas as bexigas da festa do meu filho, seu tarado maluco, sai daqui.
Incapaz de levar a termo meu êxtase, saí da cena do crime, tão confuso como entrei. Só não esperava que alguns convidados, assustados com os estouros, estivessem na porta. Entre eles meu chefe, ex-chefe, que não achou nada daquilo engraçado, nada daquilo festivo, e que, se tudo der certo, fará disso uma tara própria.